Portugal não teve, até ao séc. XX, políticas públicas generalizadas de assistência na doença, no desemprego ou na velhice, ainda mais entendido como um direito inalienável e natural do Homem.
No final da Idade Média a assistência aos desfavorecidos tinha por base a acção caritativa que procurava cumprir o ideal fraterno e solidário existente no pensamento cristão. Daí que a Igreja (nas suas diversas instituições e formas de organização) fosse uma das principais fontes de assistência, no que era acompanhada pela prática caritativa não sistematizada das elites laicas que ocasionalmente, e a seu total arbítrio, socorriam os mais necessitados.
Nos finais da Idade Média surge uma nova forma assistencial que, em termos actuais, poderemos apelidar de mutualista ou associativa, já que consistia numa agremiação laica de pessoas, reunidas debaixo de uma invocação religiosa a que prestavam culto, e que praticavam assistência mútua, essencialmente no que refere à morte (sepultamento e sufrágio da alma dos falecidos).
Neste quadro vão surgir, em 1498, as Misericórdias portuguesas. Segundo a tradição a rainha D. Leonor de Lencastre, influenciada pelo grupo de religiosos que a rodeavam (em que normalmente se destaca Frei Miguel de Contreiras), concebeu uma forma de irmandade que (e aqui reside a sua inovação e a sua real importância ao nível assistencial) não estivesse fechada aos seus irmãos, mas que se dedicasse a cumprir as 14 obras de Misericórdia enunciadas nos Evangelhos.
Da coroa veio apoio a este projecto, tendo o Rei D. Manuel, em carta às principais cidades, vilas e lugares do seu reino (aquém e além mar), aconselhado que seguissem o exemplo da capital do reino, que numa capela do claustro da sua Sé deu inicio às Misericórdias portuguesas.
Rapidamente o exemplo frutificou e outras Irmandades da Misericórdia foram nascendo. Divididas inicialmente, e por longo tempo, em irmãos de primeira e segunda qualidade (de um lado os nobres e os que vivem à lei da nobreza, do outro os homens honrados mas que viviam de ofícios contrários à nobreza), vão ter por estatuto (chamado Compromisso) um conjunto de obrigações importantes:
· Obrigação de contribuir para o culto divino, nomeadamente com as festividades da Visitação de Nossa Senhora (festa litúrgica a que eram dedicadas as Misericórdias e em cujo dia, 2 de Julho, eram feitas as eleições), da Semana Santa (em que se conjugam as cerimónias litúrgicas com as procissões do enterro do Senhor), da adoração solene das 40 horas no Carnaval (exposição do Santíssimo Sacramento durante 40 horas seguidas); bem como outras festas que localmente se adicionavam.
· Obrigação de acompanhar os corpos dos irmãos falecidos e sufragar as suas almas (como acontecia com qualquer irmandade).
· Prestar assistência aos pobres e desamparados, seguindo as obras de Misericórdia. Aqui situa-se a assistência na saúde (“visitar os enfermos”), a distribuição de alimentos e roupas aos necessitados (“dar de comer a quem tem fome”, “vestir os nus”); enterrar aqueles que não tivessem meios para tal, nomeadamente os executados por sentença (“enterrar os mortos”); visitar e fornecer ajuda aos presos (“remir os cativos, visitar os presos”), acolher e alimentar os viajantes mais pobres, com especial incidência sobre os peregrinos, atendendo que a peregrinação é essencialmente uma caminhada religiosamente dirigida (“dar pousada aos peregrinos”).
Todas estas linhas de acção podem ser encontradas na história da Misericórdia de Penafiel.
Não existe documento que ateste, com certeza absoluta, dia e ano de fundação da Irmandade da Misericórdia de Penafiel (ou de Arrifana de Sousa como até à elevação a cidade, em 1770, se chamava). O que é certo é que desde Abril de 1649 se afirma que o ano de fundação da Irmandade foi 1509, ainda no reinado de D. Manuel I.
O seu início terá sido comum aos de outras irmandades, organizada segundo o ideal propagado a partir de Lisboa, possivelmente seguindo a mesma orgânica que as demais misericórdias existentes, mas sem ter ainda alguma forma de aprovação superior, funcionando como qualquer irmandade laica que se instituísse de novo.
Terá tido, na década de 1570, aprovação ordinária do Provedor da comarca, autoridade régia de circunscrição local (no caso o Porto e seu termo, em que Arrifana de Sousa se incluía), a quem competia o controlo das irmandades, e que parece indicar estar a dar-se o primeiro passo para a obtenção de aprovação régia.
Só em 1614 a Misericórdia de Penafiel obtém do Rei a concessão de Compromisso (também chamados estatutos), forma de normativa que regula o modo de funcionamento da instituição, seus direitos e obrigações; bem como régia protecção (ser “imediatos ao poder real”, como se afirma na documentação da Santa Casa), a exemplo do que acontecia com as demais Misericórdias portuguesas.
Notícia segura é que, pelo menos desde 1596/97, a Misericórdia de Arrifana procurava aprovação real e os privilégios das outras Santas Casas, contando no entanto com a firme oposição da Misericórdia do Porto. Pretendia esta ser, no espaço do seu termo, a única Irmandade de Misericórdia com aprovação da coroa, para assim usufruir sozinha de todos os privilégios das Misericórdias aprovadas.
A primeira sede da Irmandade foi uma capela frente à igreja matriz de Arrifana, em cujas traseiras funcionava o primitivo Hospital da Misericórdia, misto de espaço de assistência na saúde e acolhimento de viajantes e peregrinos. Aí se manteve até ao fim das ordens religiosas, quando o antigo convento dos franciscanos capuchos foi entregue à Misericórdia para nele instalar o hospital.
Na capela venerava-se uma imagem de Cristo, obra atribuída ao séc. XVI, de elevado valor artístico, a que foram atribuídos numerosos milagres. Era uma das peças centrais da procissão do enterro do Senhor em quinta-feira Santa. À capela pertencia igualmente a relíquia do Santo Lenho, com que se benziam os enfermos, documentada pelo menos desde 1656 e hoje conservada no Museu de Arte Sacra.
Apesar disso, com o crescimento da irmandade e com a sua aprovação régia (que lhe conferia novo estatuto institucional) a Misericórdia tem a oportunidade de ter novo templo quando o Irmão Amaro Moreira, abade da S. Vicente de Ermêlo, propõe-se a contratar com a Santa Casa a construção de uma igreja para a Misericórdia no rocio das chãs, da qual ele pagaria a capela mor, que seria sua sepultura e dos seus parentes. O abade Amaro Moreira, que seria provedor em1627-28, terá pago grande parte da igreja que hoje se conhece, obra do século XVII, com altares em talha dourada e policromada da passagem do séc. XVIII para o XIX. Ficam-lhe anexas a capela da Sra. da Lapa, a fachada roccaille inacabada, a casa do despacho da Misericórdia (Salão Nobre), a casa da tulha (centro de convívio), a sacristia e a casa do sacristão (Museu de Arte Sacra).
Ao longo do séc. XVII e XVIII vai-se construir e solidificar a fortuna da instituição. Para além das doações que poderia receber, foi através dos legados de alma que a Misericórdia constituiu um património muito significativo. Quando alguém queria criar uma obra pia por intenção da sua alma, ou de alguém próximo, e pretendia que se perpetuasse no tempo, procurava uma instituição que desse certezas de cumprimento e de durabilidade no tempo. Uma das hipóteses era fazer um contrato com a Misericórdia, que recebia do instituidor o capital inicial desse legado, que se obrigava a emprestar a juros. Assim obtinha um rendimento anual (inicialmente 6,15%, desde finais do séc. XVII 5%) com que cumpria o legado (fosse pagando as missas, ou vestindo pobres, ou dotando órfãs, etc.) e recebendo uma parte desse juro a título da administração do legado.
Com o dinheiro que obtinha, a Santa Casa podia cumprir com as suas obrigações assistenciais para com os mais pobres, e promover o culto religioso. Estes legados foram essencialmente de missas, o que explica que o número de altares da igreja da Misericórdia passe de 1 para 5, e que esta vá constituir um importante espólio de arte sacra, cujos vestígios se conservam hoje no seu Museu.
A assistência na saúde será uma das ocupações principais da Misericórdia de Penafiel. Durante muito tempo custeará os tratamentos médicos no seu hospital ou nas casas dos pobres que constavam de uma lista (o “rol” dos pobres da Santa Casa). A partir de 1745 decide-se contratar serviços médicos para os doentes sob regime de avença (“médico do partido”). Também no séc. XVIII, e aproveitando um legado de 500 mil reis de José Moreira Leal para curar os enfermos da Santa Casa, fundou-se uma botica (farmácia) para fornecer o hospital da Santa Casa, os pobres da sua lista e pessoas externas (estes com a obrigação de pagarem os remédios), tendo como base uma decisão da Mesa, de sete de Maio de 1769. É a origem da farmácia que ainda hoje subsiste.
Em 1772 o rei D. José, no seguimento da criação, em 1770, da diocese de Penafiel, aponta a Igreja da Misericórdia para catedral, dando-lhe por invocação de S. José e Santa Maria. Nessa categoria se manteve até que em 1778, morto o rei, o Papa suprime a diocese que reintegra no Porto. A igreja volta a ser apenas a igreja da Misericórdia, sem que nestes anos o bispo D. Fr. Inácio de São Caetano sequer a tenha visitado. Restam no Museu de Arte Sacra as imagens dos santos padroeiros da Catedral.
No final do séc. XIX, e porque o hospital instalado no que restava no Convento dos Capuchos se revelava pouco adequado aos novos tempos, decidiu-se a construção de um novo edifício, inaugurado em 1894, e que a Santa Casa ficou a dever ao empenho dos provedores José Maria Pinto Monteiro e Laurentino da Rocha Nunes.
Já antes tinham sido, e graças à generosidade de António José Leal, inauguradas uma enfermaria para inválidos (em 1876) e um asilo para raparigas pobres (em 1893).
Nas primeiras décadas do séc. XX não se registam na história da Santa Casa grandes alterações de vulto, nem mesmo com o advento da república ou o regime de Salazar. Seria preciso esperar por 1975 para, no seguimento da revolução de Abril, o hospital da Santa Casa da Misericórdia ser nacionalizado, integrando a rede nacional de saúde. Era a primeira vez, desde que a memória da Casa subsiste, que a Misericórdia de Penafiel não tem sob o seu controlo qualquer valência de assistência na saúde. Só em 2002 o centenário hospital da Misericórdia é devolvido à Irmandade que o fez nascer.
Outras valências foram entretanto surgindo do esforço das administrações da Santa Casa, sobretudo na década de 1980 e nos primeiros anos do séc. XXI. Dois lares (Sto. António e S. Martinho) e uma Casa de Repouso (D. Manuel I), valências destinadas à terceira idade, como também o são o apoio domiciliário, o centro de dia e o centro de convívio (cessado em Junho de 2010). Para a infância foram criados a creche e jardim de infância O Capuchinho, na cidade de Penafiel; o jardim de infância Américo Soares (encerrado em Julho de 2012), o ATL D. Maria Leal (casal de beneméritos que possibilitou a sua criação), em Rio Mau (encerrado em Agosto de 2010) e a creche Santo António. Uma albergaria, que serviu para albergar os viajantes de passagem (deixou de funcionar em Janeiro de 2010), enquanto um moderno salão polivalente veio dotar a instituição de condições para organização de eventos próprios. Esta crescente criação de valências permitiu dar à Irmandade um novo fôlego, constituindo-a como umas das referências locais de assistência social, recriando de um modo novo, moderno e aberto à sociedade envolvente, o seu ideal plurissecular de ajuda aos mais necessitados.
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